Os Painéis Quinhentistas da Igreja Matriz de Santa Cruz – um tesouro artístico revelado em primeira mão por Hipólito Raposo

Hipólito Raposo
Muito há ainda a dizer sobre os contributos dos deportados políticos para a divulgação da História e Cultura dos Açores. Esta matéria, aliás, merece ser investigada a fundo. A ilha Graciosa, por exemplo, deve o projeto da escadaria de acesso à Furna do Enxofre a um deportado político – o graciosense Tenente Miliciano de Infantaria Manuel Severo dos Reis. Mas é sobre a ação de Hipólito Raposo que nos debruçaremos nas linhas seguintes. A condição de deportado não o impediu de um esforço inédito de identificação e salvaguarda do Património levado a cabo na ilha Graciosa. Durante a sua curta estadia, Hipólito Raposo recolheu informações pertinentes através do contato direto com a população que viriam a ser divulgadas na obra acima citada – descrição pormenorizada de aspetos históricos, antropológicos e artísticos da ilha.
Interessa aqui ressalvar o seu trabalho pioneiro de tentativa de identificação e incentivo à salvaguarda da jóia artística que constituem os Painéis Quinhentistas que compõem o retábulo da Capela Mor da Matriz de Santa Cruz, um significativo tesouro da pintura portuguesa de meados do século XVI. Os dados que foram revelados por Hipólito Raposo foram partilhados em palestra proferida pelo autor em Lisboa – Museu das Janelas Verdes (atual Museu Nacional de Arte Antiga) – em 16 de junho de 1941, divulgando ao mundo em primeira mão a existência destes painéis, os quais ocupam lugar de destaque na igreja onde o Padre António Vieira outrora pregou.
O autor refere que, apesar da falta de informações documentais diretas, a existência de alfaias religiosas e cruzes processionais de estilo manuelino datadas do primeiro quartel do século XVI é resultado de generosas doações realizadas pelos donatários da ilha Graciosa numa segunda fase do povoamento. É nesse contexto que se pode atribuir à família Coutinho, donatários da ilha Graciosa a partir de 1507, o mecenato que deu origem à encomenda dos Painéis Quinhentistas da Matriz de Santa Cruz, designadamente a D. Álvaro Coutinho. Refira-se a título de curiosidade que a capitania da ilha Graciosa foi doada pelo rei D. Manuel a esta família em virtude dos seus grandes feitos ao serviço da Coroa Portuguesa – liderando exércitos em investidas contra Castela, combatendo rebeliões na Índia portuguesa, feitos estes inclusivamente enaltecidos por Gil Vicente no seu Auto das Fadas.

Retábulo – Painéis Quinhentistas da Igreja Matriz de Santa Cruz
Estes seis painéis constituíam originalmente um políptico representando episódios bíblicos relacionados com a Cruz de Cristo, não fosse o orago da Matriz a própria Santa Cruz. Hipólito Raposo refere que após a ampliação daquela igreja, de acordo com o gosto barroco, o políptico foi separado. Dadas as débeis condições de iluminação da igreja na época, agravadas pela deterioração dos pigmentos causada pelo fumo das velas, com a devida autorização do Doutor Juíz Luís Pinto, os cinco painéis que então se encontravam no retábulo foram retirados por algumas horas para cuidada observação por parte de Hipólito Raposo e posterior registo fotográfico pela lente de um talentoso fotógrafo local de nome Nicolau Terra. Este momento foi testemunhado por alguns locais movidos pelo interesse e curiosidade – Dr. Manuel Correia Lobão e Francisco Barcelos. Toda esta complexa operação decorreu a 8 de maio de 1940. Após conversas insistentes com o pároco em serviço na época, foi apresentado a Hipólito Raposo o sexto painel, então guardado longe da vista, junto com outros quadros, no camarim do Senhor dos Passos.

Painéis Quinhentistas da Igreja Matriz de Santa Cruz
Apesar de nunca se ter concretizado a viagem recomendada por Hipólito Raposo para que os quadros fossem devidamente analisados e restaurados em Lisboa, foi graças ao seu empenho que estes painéis saíram do anonimato volvidos quatro séculos de existência. E a partir desse olhar partilhado foram tecidas várias possibilidades na definição da sua autoria. Hipólito Raposo colocou-os ao lado da obra de pintores como Cristóvão de Figueiredo e, sem certezas, aproxima-os dos quadros provenientes da Igreja do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e do quadro Milagre da Ressurreição do Mancebo (representação da Invenção da Cruz) encomendado para a Sé de Évora e exposto atualmente no Museu Nacional Machado de Castro. Os seis painéis da Matriz de Santa Cruz foram restaurados já no século XXI pelo Atelier de Conservação e Restauro de Obras de Arte da ilha de São Jorge. A sua autoria foi atribuída ao pintor conhecido como Mestre de Arruda dos Vinhos, cuja verdadeira identidade permanece, no entanto, envolta em mistério, existindo a forte possibilidade, segundo alguns investigadores, de se tratar do próprio Cristóvão de Figueiredo.
Texto: Fábio Mendes, Museu da Graciosa