RB da Ilha Graciosa

Terceira e Graciosa; relações e ralações

RB da Ilha Graciosa 30 de Setembro, 2025

(numa perspectiva do Cancioneiro Popular dos Açores)

No livro Apontamentos Topográficos, Políticos, Civis e Eclesiásticos para a História das nove Ilhas dos Açores, servindo de suplemento aos Anais da Ilha Terceira, Francisco Ferreira Drumond, em meados do século XIX, referia:


“Os habitantes da ilha Graciosa são francos, hospitaleiros, e delicados na maneira de tratar. São laboriosos, fortes e resolutos: dotados de uma sagacidade natural, amantes das suas famílias, e sobretudo solícitos pelo seu crédito e honra. O povo é bem morigerado, e humano; obediente, e sem servilismo; respeitador das autoridades, assim como religioso, sem ser supersticioso, nem fanático. Os homens são de estatura ordinária e fisionomia agradável e bem corados; as mulheres bem feitas e tão brancas, e presanteiras”…


Sou graciosense com muito orgulho e saudade. A ilha Graciosa está sempre presente em mim e é uma ilha que eu carrego dentro de mim.


E, por isso mesmo, sinto-me no direito de reivindicar aquilo que, nalguns fóruns de debate, e num decalque do conceito da “açorianidade”, criado por Vitorino Nemésio, eu tenho vindo a chamar de a minha graciosensidade, ou seja, o meu apego e o meu amor incondicional pela ilha Graciosa, a minha marca de identidade e de identificação com o espaço graciosense.


Começaria por vos lembrar uma quadra, de uma cantiga de raiz graciosense, e que assim diz:


                 Ó José, olha o teu pai

                 Tira o chapéu, beija a mão;

                 Não sejas mal-educado

                 Puxa pela boa ação.

Nós, graciosenses, fomos educados tendo por base a norma educativa desta quadra, que é um requinte de moral antiga: “tira o chapéu” e “beija a mão”.


Ora bem. Eu que sou bem-educado e bem-ensinado, faço aqui uma confissão: apesar de fiéis, nós graciosenses praticamos a bigamia… E isto porque temos dois amores, duas mulheres nas nossas vidas: uma chama-se Graciosa, a outra chama-se Terceira.


A Graciosa é a nossa legítima esposa. A Terceira é a nossa amante apetecível. A Graciosa é gloriosa e literalmente bela e dela dizemos: Graciosa! Da Terceira dizemos que “és linda, és linda, és engraçada/ és engraçada, és uma bonita amante / bonita amante, viva o meu bem”! Musicalmente estas ilhas são uma mistura de José da Lata e Joaquim dos Fados…


A Graciosa e a Terceira têm ciúmes uma da outra e fazem parte da nossa memória colectiva e do nosso imaginário afectivo. “Entre les deux, mon coeur balance”, que é como quem diz: é uma doideira gostar de duas mulheres ao mesmo tempo…


É precisamente sobre as relações e ralações entre as ilhas Graciosa e Terceira que aqui me proponho tecer várias considerações, numa perspectiva do Cancioneiro Popular dos Açores.


As ilhas Terceira e Graciosa sempre estiveram profundamente ligadas por laços históricos, afectivos, sócio-económicos, administrativos e culturais. Por isso mesmo, para qualquer graciosense a ilha Terceira é uma referência incontornável e permanente.


Nas veias de muitos graciosenses corre sangue terceirense, pois que alguns dos homens e mulheres que ajudaram a povoar a Graciosa vieram precisamente da ilha Terceira. E começa logo por haver aqui algum complexo de Édipo e algumas questões freudianas que não são de descurar…


Terceirenses e graciosenses têm muito em comum, em termos de tradições, usos e costumes. Somos todos festivos e festeiros, gostamos de toiros e somos danados para a brincadeira… Por outro lado, por mais que sejamos uma Região Autónoma, prevalece ainda entre nós a lógica do ex-distrito (Angra do Heroísmo). E, sendo assim, as ilhas Terceira, Graciosa e São Jorge continuam e continuarão a estar próximas e imbuídas do mesmo espírito, irmanadas no mesmo destino colectivo.


Vejamos agora como, através do Cancioneiro Geral dos Açores, de Armando Côrtes-Rodrigues (três volumes, Angra do Heroísmo, R.A.A., S.R.E.C., D.R.A.C., 1982), se perspectiva a ilha Graciosa na sua relação com a Terceira e outras ilhas:


A Terceira veste seda (alusão a ter sido Angra a capital do arquipélago e duas vezes capital do Reino)

Graciosa, chamalote (tecido de lã)

Pico, pano da terra

Faial, de toda a sorte (influência estrangeira)


                 Graciosa, mãe das uvas

                 Pico e Faial, dos damascos

                 Terceira é mãe das nêsperas

                 Jorge é o rei dos pastos.


                 Ó meu amor da minha alma

                 Não vades à Graciosa

                 Que o canal é mui comprido

                 E a Barra é mui perigosa.


                 A Terceira é das touradas

                 Faial, um jardim de flores

                 Jorge é terra de inhames

                 Graciosa dos amores.


                 Do Pico são picarotos

                 Da Graciosa alcavaços (Alçava, topónimo de Montemor-o-Novo)

                 Da Terceira rabos tortos (cão de fila)

                 De S. Jorge, patacos falsos. (moeda antiga)

E é curiosíssima esta quadra que dá bem conta da importância que a Graciosa chegou a ter em termos de exportação de cereais:


                 A Graciosa é pequena

                 Pequena, mas abonada

                Anda a sustentar Lisboa

                A trigo, mais a cevada.

Vejamos agora como o Cancioneiro reflecte as relações mais específicas entre as ilhas Terceira e Graciosa.


Numa primeira perspectiva, temos a ilha Terceira encarada pelo graciosense que ainda não saiu da sua ilha e que fala da Terceira com algum distanciamento, destacando, com alguma ironia, outros costumes e modos de ser:


                 A Terceira é boa terra

                 Assim diz quem de lá vem

                 Não há terra como a nossa

                 Para amar e querer bem.


                 A Terceira é boa terra

                 Dá de comer a quem passa

                 A quem não trouxer dinheiro

                 Nem água lhe dão de graça.


                 A Terceira é boa terra

                 Ninguém o pode negar

                 Até a gente de lá

                 É diferente no falar.

Numa segunda perspectiva, temos a Terceira como a ilha madrasta, a terra ingrata, pois eram para lá que iam os mancebos graciosenses cumprir o serviço militar, sinónimo de “ir p´ró castelo” (fortaleza de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo). De tal facto, se queixavam, em primeiro lugar, os próprios soldados:


                 A Terceira é boa terra

                 Embora que alguém se zangue

                 Eu por ela faço guerra

                 Derramo todo o meu sangue.


                 Quando cheguei à Terceira

                 Fiquei como a noite escura

                 Ai triste Castelo de Angra

                 És a minha sepultura.

Ecoavam também queixas das mães dos soldados, que viam os seus filhos partir e ficavam aflitas:


                  Ó Terceira, terra ingrata

                  Castelo da falsidade

                  Roubas os filhos às mães

                  Na flor da sua idade.


                 Ó Terceira não atires

                 Àquela nau que lá vem

                 Carregada de soldados

                 Cada um da sua mãe.


                 Uma mãe que cria um filho

                 Com sangue nas suas veias

                 Para o ver num regimento

                 Amarrado com correias.

E há o sentimento das namoradas que, permanecendo na Graciosa, lamentavam a longa ausência dos seus apaixonados que no “Castelo” sobreviviam:


                 Ó Castelo da Terceira

                 Quem te visse derrubado

                 Se tu não fosses Castelo

                 Meu bem não era soldado.


                 Terceira, terra ingrata

                 Terra das ingratidões

                 A alegria tens roubado

                 A mais de mil corações.


                 A Terceira n´algum tempo

                 Era um pocinho de areia

                 Agora é uma cidade

                 Onde o meu amor passeia.

Numa terceira e última perspectiva, temos uma já clara identificação do graciosense com a ilha Terceira, sentindo ele um desejo irreprimível de largara amarras e deixar a sua Graciosa para fixar residência naquela ilha vizinha e irmã:


                 Quem me dera na Terceira

                 Antes que fosse no cais

                 Então eu diria

                 Graciosa nunca mais.


                 Quem me dera na Terceira

                 Naquelas varandas verdes

                 Apanhar cravos e rosas

                 Alecrim pelas paredes.


                 A verdade está aqui

                 E sem querer fazer guerra

                 Terceira, gosto de ti

                 Porque és a minha terra.

Para finalizar, lembro a existência de uma cantiga popular, genuinamente graciosense, intitulada Terceira e que faz parte do repertório dos grupos folclóricos da ilha branca.


Conforme refere o tenente Francisco José Dias, no seu livro Cantigas do Povo dos Açores (I.A.C., Angra do Heroísmo, 1981), “o primeiro compasso da canção Terceira começa com um si bemol, nota sombria que dá conta da nostalgia de quem está ausente da sua terra natal, e que logo se recompõe com o tonal si natural no compasso seguinte”.


Ontem como hoje, a Graciosa não pode passar sem a Terceira, nem esta sem aquela. E se o nosso desenvolvimento passa necessariamente pelo turismo, então estas duas ilhas terão de se unir cada vez mais, conjugando vontades e interesses e articulando políticas e estratégias. Sem nunca descurar os afectos, claro está.


 


Victor Rui Dores


 


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